quinta-feira, 18 de abril de 2013

Biscoito de limão


Era uma criança, seus grandes e velozes olhos castanhos já tinham visto tanta coisa que junto às lágrimas que vazaram escorreram também -quase sem querer- a inocência e sensibilidade típicos de outros da mesma idade. Seus olhos aprenderam a repelir qualquer um que tentasse se infiltrar, como as poças de lama que se formam em uma estrada perdida, refletindo a superfície e fazendo mistério quanto a profundidade do acidente que a água turva preenche. Esse mecanismo de defesa era justificável depois de tudo a que tinha sido submetido. Mesmo que você preste muita atenção não conseguirá ver nada além de si mesmo, para conhecer aquele garoto era preciso mais que simples observação, era preciso mergulhar as mãos em toda aquela lama, correr o risco de ser perder, sem saber o que se encontra do outro lado do espelho de tons sépia.
Ele estava quieto a maior parte do tempo, enquanto os outros no parquinho queriam  expor todos suas incríveis vitórias, gritar ao mundo que estavam ali! O garoto dos olhos de poça de lama não, ele se camuflava como um camaleão, perdia-se na paisagem.
Por isso demorou tanto tempo para que eu o percebesse. Estava ocupada demais me preocupando com os males do mundo que  todo dia eram esfregados no meu nariz pela televisão, berrados no meu ouvido pelos meus amigos comovidos por causas de sociais, socados garganta abaixo pelos ativistas políticos e ambientais... A verdade é que acabamos sem sentidos. Estamos tão ocupados lamentando os problemas do mundo que não podemos resolver que, por um minuto, esquecemos de olhar pra baixo, para os nossos pés. Afinal é o mundo que nos sustenta. E não é preciso  olhar tão longe para cuidar dos seus problemas. Só fui perceber isso quando tropecei e literalmente cai de cara no mundo e um pequeno garoto com olhos de poça de lama me socorreu. Me vendo caída ali no meio do parque ele sentou sobre seus calcanhares e ficou observando enquanto eu me contorcia de dor. E quando eu finalmente consegui sentar ele me ofereceu um biscoito de limão. Como um convite a experiência mais fantástica da minha vida.

terça-feira, 19 de março de 2013

Sobre aquela senhorinha quase humana, mas inconveniente


(só para ter uma imagem para fazer graça, amanhã atualizo com uma ilustração minha. Mas gostei dessa velhinha...)
Um dia eu perguntei a vida: "E você acha isso justo?!". Ela se virou rápida, me encarou e disse pronta e secamente "Não". Girou em seus calcanhares e seguiu apressada, sem tempo para mais e sem o menor sensibilidade de me esperar. Eu não tinha tempo para discutir que aquilo era insano, só podia acompanhar e tentar me recuperar pelo percurso, até que ela resolvesse me surpreender novamente.

Quem sabe eu morra hoje. Sim, hoje parece ser um bom dia para morrer. Na verdade ele é tão adequado como qualquer dia. A morte pode caber em qualquer segundo de qualquer um dos meus dias. E hoje é um deles.  Poderia ser uma parada no coração ao receber uma descarga elétrica da minha torradeira. Talvez com um caroço de azeitona. Posso me engasgar e morrer comendo, o que não é nada mal. É, eu poderia sofrer da maldição da batata quente: por gulodice engolir uma batata muito quente que me mataria instantaneamente, queimando toda minha traqueia pelo caminho. Morta pela gula. Nem todos tem o privilégio de morrerem pecando, ou sendo tão estúpidos. Essa seria uma boa morte para hoje. Também posso escorregar em algum carpete, bater minha cabeça em um degrau e... essa não seria lá grande coisa, parece uma maneira seca de morrer. Gostaria de morrer em uma grande tragédia! Não que eu queira sofrer muito, mas pra que morrer se não podemos dar um espetáculo? Chocar! Sim, eu poderia ser a refém de um assalto ao banco e acabar com um tiro entre os olhos, só porque queria pagar minhas contas. De repente algo tão banal como pagar as contas se transformaria em algo realmente importante e significativo. Ou o avião onde estarei esta tarde pode cair, deixando sua trilha de lixo pelo oceano pacífico. O meu seria o primeiro corpo encontrado, desfigurado e destroçado. Demorariam a me identificar e meu cadáver chocaria o mundo! Sim, tem várias maneiras boas de morrer. Espero não tropeçar em um carpete.
Posso não morrer hoje, mas posso desenvolver alguma doença grave nesse instante. Essa que me derrubará na cama, fraca e debilitada. Ela deixará toda minha família e amigos no chão. Não de uma vez só, mas de maneira sádica sugará todos até que eu consiga, depois que já não for mais a mesma, partir. Pra onde? Oras, isso não importa, estamos discutindo aqui só a passagem, sem nos preocupar com o destino final.
De certa forma morrer tem sido super valorizado. Você pode fazer muitas coisas nessa vida que te transformarão em uma pessoa maior e melhor, mas, de certa forma, nada supera o momento da sua morte. Bater as botas é o melhor plano para quem quer reconhecimento. Todos de repente prestam atenção e lembram que você era bom a sua maneira. Qualquer porcaria que tenha produzido durante a vida vira ouro assim que você parte. Pena não estar lá para ver...
E por que não falar sobre a morte?
Essa senhorinha me espreita desde muito cedo. Tenho respeito por ela e até certa simpatia, afinal, existe coisa mais humana que a morte? Ela só faz seu trabalho e segue em frente, mas nós somos muito apegados, não sabemos perder, abrir mão, por isso não conseguimos aceita-la, somos de mundos diferentes. Não é culpa dela que sejamos assim tão despreparados à dor. Deve ser um trabalho solitário. E ela deve ficar indignada com nossa insistência na ignorância. Sabemos que a morte pode chegar a qualquer momento, para qualquer um, e nos fazemos de surpresos quando ela aparece. Nos esforçamos para esquecer que ela é uma visita que chega muitas vezes sem avisar, enquanto deveríamos ter sempre a casa arrumada para recebê-la. Claro que das primeiras vezes ela é um hóspede muito espaçoso e inconveniente, afinal quem ela pensa que é para invadir seu espaço sem nem pedir licença? Transforma a casa toda em uma bagunça! Apesar disso, depois que recebemos ela algumas vezes... não deixamos de ficar transtornados, mas já conhecemos a visitante e sabemos como ela nos atinge. Sabemos seus hábitos, sua rotina, como se move e reconhecemos o som da sua voz quando ela chama. E também sabemos que depois de tudo ela irá embora e poderemos arrumar a casa. Não como costumávamos arrumar, pois com a visita da morte algumas coisas quebram, outras se perdem. Sempre fica um vazio com a sua passagem.
"Mãe, você vai morrer hoje?" eu perguntava todos os dias, ironicamente ainda muito nova para entender que essa pergunta era indigna de uma criança que ainda não saiu do pré escolar. E ela sempre dizia a mesma coisa. "Não sei". Eu não entendia como! Ela deveria saber tudo! Tudo! E então... "Mãe, e eu?" Ela também não podia responder. Nem sobre o papai, sobre minha irmã, a vovó, minha professora do maternal ou o velhinho da venda dos doces. Eu não poderia saber quando me despedir, quando não estariam mais conosco. Queria que ela respondesse que eles partiriam na hora certa. Mas ela não mentiu. Não lembro quando parei de perguntar, só sei que a morte me acompanhou por muitos anos em pensamentos frequentes.
Procuro sempre estar preparada para tão ilustre visita, mas quando ela aparece e arrebata alguém muito querido sem aviso prévio, não tem como estar preparado. Logo que me apego a alguém começo a imaginar a morte que essa pessoa poderia ter. Uma mania boba, distração inocente. Tento lembrar todo dia que as pessoas do meu lado podem não estar mais aqui amanhã. E não amo todo mundo como se não houvesse amanhã, só me preparo para caso isso aconteça. Pessimismo? Levando em conta que você sabe que todo mundo vai morrer algum dia, eu chamaria de realismo. E não tem como se preparar de verdade para isso. Imaginar a morte dos outros não deixa mais fácil aceitar a partida deles, só deixa mais fácil entendê-la.
Por muitas vezes você não poderá aceitar a morte. Vai brigar com ela, usar todas as suas forças, todos seus argumentos, sua paixão. E por tantas vezes estará com razão de estar revoltado. Com razão ou não, a morte sempre vence.
Eu não tive medo da morte, quando criança, tinha curiosidade. E não tenho hoje. Ficou claro que nós, uma hora que ninguém pode determinar, morremos. E sim, todos podemos acabar com nossas vidas a hora que quisermos, mas mesmo quem tem esses impulsos não pode dizer quando vai, simplesmente... vai. O pior da morte não é não podermos ver as pessoas queridas nunca mais. É saber que não poderemos vê-las nunca mais. Se hoje você viajasse, fosse a um paraíso tropical sem pretensão de voltar, as pessoas não fariam um velório pela sua ausência. No máximo uma festa de despedida. Porque mesmo não tendo você, elas sabem que têm o direito de senti-lo. E quando se morre, esse direito é tirado delas. Têm que transformar você de amigo, amor, pai, irmão... em memória. E isso dói. Ter que superar as saudades mesmo não querendo ou concordando com isso. A saudade nunca vai embora. Mas a dor parte. Depois de um tempo você para de sofrer.
Estancar o sofrimento também traz agonia, quer dizer que você esta realmente perdendo o outro. E você sabe. Por isso muitas vezes quer prolongar o sofrimento o máximo possível, como se a dor pudesse suprimir o vazio da perda. Quem se perde para a morte só parar de existir para você quando se aceita sua morte. Enquanto isso não acontece...ele está de férias no caribe. E o portão rangendo pode ser a volta dele, os lençóis secando ao vento podem estar escondendo-o, a primeira ligação pela manhã pode ser ele... E você o mantem vivo assim, em um jogo de esquecer que ele está morto e logo depois lembrar que ele não está no caribe.
As vezes acordo de algum pesadelo onde algum ente querido meu morre. Fico muito aliviada quando vejo que ele está bem e a salvo. Suspiro e vou ao seu encontro... Dai acordo, de verdade, e vejo que ele está realmente morto e não vai voltar, como já sei a anos. Sim, anos. E mesmo assim ainda parece que mantenho a esperança dele voltar. Eu tenho plena consciência que ele não vai voltar, mas meus desejos de que tudo seja só um pesadelo me enganam. E não tem remédio ou fórmula mágica, só me resta seguir em frente.
E voltando a minha própria morte. Talvez eu morra hoje e talvez você morra hoje. E isso não é drama. São os fatos. Mas vão chorar e sofrer por nossa ausência. E depois superar. Estaremos vivos somente nas lembranças das pessoas. Só isso restará de nós. Não que eu seja alguma grande conhecedora da morte, essa nobre senhora só me visita sazonalmente e -como podem perceber por eu estar aqui escrevendo viva e não do além túmulo- nunca exigindo minha companhia. Temos diferentes experiências com a senhorinha, mas ela é sempre a mesma para todos.
Penso que a melhor maneira de morrer... é vivendo e compartilhando. Você pode até se dar muito bem sozinho e ser um lobo solitário. Mas o que fica quando partir? Pois eu te digo que o que fica é o que fica nos outros. Nada que possa construir sozinho. As marcas que conseguiu deixar em cada um. E para isso, basta entrega. Ser você mesmo e valorizar quem gosta de ter ao seu lado. Não consigo imaginar melhor destino para mim, do que residir em algumas histórias bobas com a participação de uma menina meio estranha, de cabelo meio azul, sanidade meio duvidosa e ... completamente morta.

domingo, 3 de março de 2013

#1 ensaio de texto


Eu quero que você se sinta mal. Quero que ande na chuva pela cidade, a noite. Que seus sapatos fiquem encharcados, deixando você consciente de cada passo incerto, sem rumo, que dá. Sozinho, sem ninguém para te amparar, com medo de virar a esquina e não encontrar ninguém. Ou de te encontrarem nessa situação deprimente. Medo de voltar, de ficar. Quero que persiga desconhecidos pelas calçadas de lugar algum, fingindo à si mesmo ser minimamente acolhido. E quando tiver uma pequena prova do amargo que é meu desespero, me veja.
Eu deixo você se sentar nesse muro de onde te observava, podemos repartir meu guarda-chuva florido. Ver os carros passarem e lembrar que não somos nada, como eles sempre me lembram, quando correm tão rápido... E então lembre-se que ninguém me ofereceu abrigo algum e que, mesmo eu não sendo nada, esse mundo torto também é meu. Assim como as flores desse guarda-chuva.

Eles ficam mais bonitos quando chove, os faróis.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Antes de se entregar a Morfeu


Às vezes me vejo no espelho antes de ir dormir, fito com sinceridade meus próprios olhos e penso que poderia mesmo amar alguém. Não quero ser egoísta, eu não precisaria sequer ser correspondida, mas eu poderia. Romantismo pode parecer antiquado, sempre achei, mas nada como meus pijamas para poder visualizar a simplicidade disso. Amar alguém.
Imagino o mar indo e vindo, eu poderia amar como o mar. Como a praia de noite. Deserta, mas só de botar os pés na areia sente-se mais importante, acolhido por algo maior que você. E quando percebe as ondas quebrando na areia, a força, descobre que poderia ficar ali para sempre e nada poderia atingi-lo... Enfim amanhece e junto com um lindo nascer do sol também chega outra notícia: você não é a última pessoa do mundo. Por mais que essa notícia possa parecer feliz, todo o riso que o sol louro trás ao mundo não se compara a aquele sentimento que cai sobre você a noite, plenitude, é assim que eu chamaria. E eu poderia amar alguém.
Em vez do reflexo das minhas pupilas do outro lado teria outrem onde eu poderia ver o mar quando analisasse os olhos. E seria ideal por alguns instantes, pois me encontraria plena nos olhos de outra pessoa. Sim, eu poderia amar alguém. Eu poderia me perder e mergulhar em alguém, submergir fundo onde ninguém mais me achasse. Quieta observando os raios de sol do outro lado do mundo. Dentro d’água eles podem ser tocados.
Desvio o olhar do espelho em um suspiro. Deito a cabeça em meu travesseiro. Romantismo é realmente antiquado... me reviro na cama antes de dormir.